terça-feira, 13 de março de 2007

O Grande Desperdício

Esse texto é de uma conferência realizada por Le Corbusier em Chicago, 1935. Mesmo sendo os exemplos América do Norte e Europa, acho que o descrito se enquadra perfeitamente ao Brasil. É um texto interessante para se pensar sobre a realidade de São Paulo e tantas outras cidades que definham pelo caos que as invade. Vale ler, levará em torno de 20 minutos bem gastos do seu dia.


..."A medida de nossos atos é dada pela jornada de vinte e quatro horas..."

"O argumento fundamental, capaz de apoiar diante do público americano minhas propostas de reforma arquitetural e de reorganização das cidades, é precisamente que nossa jornada solar foi maltratada. Que, em conseqüência da negligência e pela voracidade insaciável do dinheiro, iniciativas nefastas foram tomadas na questão urbana. O trabalho, o imenso desenvolvimento das cidades - é conduzido unicamente pelo lucro e contra o bem-estar dos homens. Somente a inversão dessa situação falsa pode trazer as alegrias essenciais. É dentro da jornada solar de vinte e quatro horas que o equilíbrio deve reinar, que um novo equilíbrio deve ser instaurado. Fora disso, não há salvação. Eu expresso por um círculo (fig.1) a jornada solar dos dias de hoje, nos EUA, assim como na Europa. Esse primeiro setor de oito horas (A) representa o sono. Amanhã, e a cada dia, a jornada será nova e fresca. Em (B), uma hora e meia perdida nos transportes coletivos - metrôs, trens, ônibus e bondes. Em (C), oito horas de trabalho, que representam atualmente a participação de cada um na produção necessária. Em (D), mais uma vez os transportes coletivos: tempo desperdiçado. De saldo, (E) as cinco horas noturnas de ócio: mesa familiar, vida dentro da concha do caracol - o lar. Que lar?

Digam-me quando, nessa jornada regrada, essa jornada que é o ano, os anos e toda a vida, quando o homem, esse animal físico estruturado, coberto de músculos, animado por um circuito sanguíneo, atravessado por uma rede nervosa, alimentado por um sistema respiratório - quando esse ser vivo, com seu mecanismo sutil e delicado, pode fazer com sua própria máquina aquilo que o obrigam a fazer com todas as máquinas: a limpeza, a manutenção e os reparos? Nunca. Não ha tempo para isso! Digam-me também, quando esse ser organizado há milênios pela lei do Sol, digam-me quando e onde ele oferecerá sua carcaça pálida aos raios regeneradores? Tal qual uma planta num porão, ele vive na sombra. O que respira? Vocês sabem! O que ouve? Vocês conhecem o tumulto extenuante das cidades de hoje. Seus nervos? Se deterioram e nunca se reconstituem.

Eu desenho (fig.2) o contorno indeciso que abraça a região urbana. No centro (M) está o coração cidade - os negócios. As indústrias e as fábricas? Estão dentro ou à volta, na estupidez da desordem e da falta de planejamento. Essa região urbana é uma reserva imensa. Ela contém dois, três cinco, sete, 10 milhões de criaturas! Seu diâmetro é de 20, 30, 50, cem quilômetros. Vocês, americanos, batem todos os recordes: as regiões urbanas de Nova York ou Chicago têm cem quilômetros de diâmetro! Tanta dispersão; por quê! Que frenesi é esse que repele milhões de seres para tão longe uns dos outros? Por quê? É que esses homens perseguem uma ilusão; a da liberdade individual. Porque a atrocidade das grandes cidades é tamanha que o instinto de preservação leva cada um a fugir, a se salvar, a perseguir a Ilusão da solidão. - A reivindicação fundamental: a liberdade. Eles são milhões que querem assim voltar a pisar a grama verde da natureza; que querem ver o céu, as nuvens e o azul; que querem viver com as árvores, essas companheiras de épocas que precedem a história. São milhões! Eles vão, se precipitam, chegam. São agora milhões deles que consideram seu sonho assassinado! A natureza se dissolve sob seus passos; as casas tomaram o seu lugar com estradas, estações e mercados. Essas casas são milhares. São as cidades-jardins (R), criação do fim do século XIX, aprovada, favorecida, santificada pelo capitalismo. As cidades-jardins, represas da grande torrente de rancores acumulados. Dessa multidão gigantesca, dessas montanhas de ressentimentos e reivindicações, fez-se a poeira dispersa aos quatro ventos dos céus, a cinza inerte: a poeira de homens.

O estatuto social, egoísta e parcial, teve assim a sua vida prolongada.
No horizonte das cidades-jardins desarticuladas, o sonho perdido. Os homens, quando lá chegam, às oito da noite, têm os braços e a cabeça em pedaços. Eles se calam e se enterram. Foi perfeitamente destruída toda a força coletiva - essa admirável potência da ação, essa alavanca de entusiasmo, esse criador de civismo. Achatada, adormecida, abatida, a sociedade vive. Os fomentadores das cidades-jardins e os responsáveis pela desarticulação das cidades proclamaram bem alto: "Em primeiro a filantropia: para cada um seu pequeno jardim, sua pequena casa, sua liberdade assegurada." Mentira e abuso de confiança! A jornada só tem 24 horas. Essa jornada é deficiente. Ela recomeça amanhã e por toda a vida. Toda vida é estragada por uma desnaturalização do fenômeno urbano.

Eu desenho de novo o contorno da região urbana (fig. 3). Coloco novamente a cidade (M). Nessas vinte e quatro horas solares, tudo deve ser realizado: o movimento furioso desses milhões de seres no círculo do seu inferno. Criaram-se, eu já disse, os T.C.R. P ou os T.C.R.X - os transportes coletivos da região P ou da região X. Primeiramente, ferrovias (S); vida nos trens: estação, vagão, estação. Depois os metrôs (U); depois as estradas (Y) - estradas para os bondes, ônibus e automóveis, bicicletas e pedestres. Queiram por favor refletir sobre isso: a estrada passa na frente da porta de cada uma das casas da prodigiosa, fantástica, louca região urbana! Queiram, olhando para dentro de si, tomar consciência da rede fabulosa das estradas da região urbana. Entremos agora em uma das casas da enorme região. Nos EUA, por exemplo, infinitamente mais e melhor que na França, eis o conforto: luz elétrica, gás de cozinha, água encanada, pias, telefone. As canalizações vêem até aqui, sob a terra, e ocupam a enorme região, em uma rede difícil de imaginar. Uma rede - de cem quilômetros de diâmetro - que é a própria imensidão. Muito bem! Quem paga tudo isso? Desta vez, a pergunta está feita. Quem paga isso? Primeiro vocês me respondem: - "mas é justamente o trabalho dos tempos modernos, o próprio programa de nossas indústrias e de nossas empresas. É a abundância." Friamente eu digo: tudo isso é faz de conta e nada mais. Isso não traz nada para ninguém, já que essa liberdade apaixonadamente procurada, essa natureza ao assalto da qual todos vocês partiram, não é mais que vento e ilusões - desastre da jornada inacabada de vinte e quatro horas. Quem paga? O Estado! De onde ele toma o dinheiro? Dos bolsos de vocês. São impostos esmagadores e dissimulados, são impostos indiretos sobre tudo aquilo que vocês consomem: mercearia, sapatos, transportes, teatro e cinema. Por que pagamos na França, em Paris, 2,10 francos o litro de gasolina, quando este custa 0,25 francos ao desembarcar no porto do Havre - depois de tudo pago: a extração da mina, a refinação, a administração e os dividendos aos acionistas. 2,10 francos!

Compreendi!
Compreendi que o gigantesco desperdício americano ou europeu - a desorganização do fenômeno urbano - constitui uma das cargas mais esmagadoras da sociedade moderna. E não o programa de sua indústria e empresa! Um plano falso, sobre premissas enganadoras. Que liberdade, hein? Não brinca! É a escravidão das vinte e quatro horas. Isso sim! Conclusão. Pego um giz preto e, sobre o setor das oito horas de participação necessárias à produção, cubro a metade, a metade em preto - a morte. Escrevo: para fazer de conta. Trens, metrôs, carros, estradas, e todas as canalizações, e as administrações correspondentes, e o pessoal da exploração, e o da manutenção, e o dos reparos, e o policial que ergue seu bastão branco, tudo isso é o desperdício estúpido dos tempos modernos. Vocês pagam, nós pagamos a cada dia por isso, por quatro horas de trabalho inútil. As estatísticas de vocês nos dizem: "o governo dos EUA recolhe 54% do fruto do trabalho geral".

Essa é a verdade.
O dólar perdeu a auréola. Não há mais montes de ouro nos EUA. Após os dias trágicos que sucederam a euforia da indústria bélica os americanos, tateando, procuram se tornar realistas; onde está o vício do sistema, onde está o novo caminho? Eles endureceram, lutando para arrancar quatro centavos do desperdício; quatro centavos para viver! A produção útil à sociedade é o calçado, a roupa, o abastecimento sólido e líquido, a habitação (o refúgio em geral), os livros, o cinema, o teatro, a obra de arte. O resto é só vento: o furacão sobre o mundo - o grande desperdício. O veredicto está dado.

Façamos a proposta construtiva, fixemos o programa adequado aos novos tempos: reconstrução das regiões urbanas, revitalização do campo.
Desenho, na mesma escala (fig. 4) a cidade dos tempos modernos. Ela não tem subúrbios. As técnicas modernas permitem ganhar em altura o que se perdia em extensão. A cidade está concentrada, breve. A questão dos transportes se resolve por si só. Redescobrimos nossos pés. Com edifícios de cinqüenta metros de altura, podemos alojar mil habitantes por hectare, uma superdensidade. Os edifícios cobrem apenas 12% do solo. Os 88% restantes são parques. O esporte aí se instala; o esporte está ao pé das casas. Na periferia, a cidade cai verticalmente sobre as plantações de trigo, sobre os prados ou pomares. O campo está à volta; ele entrou na cidade fazendo uma "cidade verde" (K). A cidade é classificada em suas funções diversas. O campo está à volta (L). Os automóveis - um milhão e meio de automóveis cotidianos de Nova York - são precisamente a doença, o câncer. O automóvel será precioso no fim de semana ou até mesmo a cada dia, para se precipitar nas tenras vegetações da natureza, logo ali. Termino desenhando um novo círculo das vinte e quatro horas solares. Oito horas de sono (A); meia hora de transporte (B) quatro horas de trabalho produtivo; participação necessária e suficiente para a produção; as máquinas operam seu milagre (C); meia hora transporte (D). E eis aqui as onze horas de ócio cotidianos.

O grande desperdício americano me permitiu ir ao fundo da aventura da época presente e vê-la com mais claridade do que na Europa, onde a doença é parecida. Vejo claro. Compreendo. Esses dois discos representativos da jornada solar exprimem pura e simplesmente o passado e o futuro. (fig. 5) Essas onze horas de ócio, tenho muita vontade de lhes dar um outro qualificativo: a verdadeira jornada de trabalho da civilização maquinista. Trabalho desinteressado, sem lucro, dom de si; manutenção do corpo - esplendor do corpo; moral sólida; ética. Ocupações individuais livres. Livre participação dos indivíduos nas empresas ou jogos coletivos. Sociedade acionada com todos os seus motores: o individual e o coletivo nessa medida justa e proporcional que é o próprio jogo da natureza - a tensão entre dois pólos. A massa está entre dois pólos; um pólo sozinho só tende ao zero; os extremos matam a vida; a vida corre bem no meio. O equilíbrio é o signo próprio do movimento imperecível. O equilíbrio não é o sono, a ancilose, a letargia ou a morte. O equilíbrio é o lugar da união de todas as forças. Unanimidade. Eis como o urbanista pode ler o destino das sociedades, nos dias de hoje. Em tais bases individuais, eu pude, nos EUA, propor ao meu auditório a grande reforma de suas cidades: reorganização do equipamento dos países, em favor dos homens. É, ao mesmo tempo, o programa dos grandes trabalhos e, como conseqüência, a salvação da indústria, que deve se voltar para objetivos fecundos. Assim se desenha a aventura.

É preciso, portanto, lançar o mundo na aventura! Lançar as pessoas na aventura!... Os espíritos fortes podem desejar entrar no jogo. Mas e os outros? Eles tremerão dos pés à cabeça.
Nesse caso, os espíritos fortes inventam a catapulta para tudo lançar na aventura. Tudo será novo. Joguem as pessoas na água! Será preciso que elas nadem, e elas nadarão, e que elas saiam da água e que assim chequem a outra margem. Na volta, meu companheiro de mesa, no La Fayette me dizia: " É claro que, se os construtores das catedrais surgissem das eras longínquas na Paris moderna, eles poderiam exclamar: " O quê é isso?! Com seus aços diversos - doces, duros, cromados e outros - com seus cimentos Portland artificiais ou seus cimentos elétricos, com suas máquinas elevadoras, perfuradoras, escavadoras, com seus cálculos, sua ciência da física, da química, da estática, da dinâmica, mas, meu Deus! Vocês não fizeram nada de digno e humano! Vocês não fazem nada que ilumine a sua volta! Nós, com pedras pacientemente cortadas e ajustadas sem cimento, umas contra as outras, nós fizemos as catedrais!"

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